A situação daquela casa, já crítica, mergulhou no abismo há mais de um ano com a suspensão do Bolsa Família.

No bairro São João, em Ibirajá, distrito de Itanhém, o tempo parece ter parado dentro de uma casinha antiga, no meio da ladeira de uma região conhecida como Gogó da Ema. Mais do que paredes e telhado, ela guarda histórias silenciosas de abandono. Cada ação do tempo na parede é uma cicatriz do sofrimento; cada buraco no piso, um capítulo da resistência de uma família que, como tantas outras no município, cresceu sem oportunidades, lutando diariamente por dignidade e esperança. É entre essas paredes que Maria Aparecida Gomes Silva, 48 anos, tenta, com uma força silenciosa e quase invisível, manter de pé o mundo para seus quatro filhos: Lucineia de 19 anos, Valdeir (18), Luciano (15) e Adriano (13).

A reportagem do Água Preta News cruzou a porta dessa residência na manhã desta terça-feira (16) e se deparou com uma cena de desolação que vai muito além da pobreza material. É uma pobreza de esperança, de futuro. A sala apertada, com uma cama logo na chegada, serve de quarto e sala de estar. Dois pequenos cômodos abrigam o pouco que lhes resta de privacidade. A cozinha é um monumento à precariedade, com um fogão com apenas duas bocas funcionando e uma geladeira enferrujada, de porta solta, que não cumpre sua função mais básica de conservar alimentos.

“Eles comem o que o povo dar, essa é a verdade”, disse Cleude Silva Lima, vizinha que se tornou o esteio da família após a morte do patriarca Valdeci Pereira Lopes, no último mês de agosto.

O banheiro, em condições sub-humanas, completa o cenário de um lugar onde a dignidade foi, há muito tempo, negociada pela mera sobrevivência. Em um dos quartos não tem nada. No outro, mais duas camas para uma família de cinco. As posses da família, roupas e calçados doados, são colocados em malas e sacolas no chão, pois não há armários ou guarda-roupas. É uma existência provisória que se arrasta por anos, agravada por uma tragédia recente.

Após a morte de Valdeci aos 58 anos, um vácuo ainda maior se abateu sobre aquela família. Valdeci, antes de adoecer, sustentava a casa com trabalhos braçais no campo, e sua partida, além de emocional, foi também financeiramente catastrófica. Foi então que Cleude Silva Lima, uma vizinha religiosa, mãe de dois adolescentes e empregada doméstica, que já era presente, se tornou o esteio improvável e vital dessa família.

Cleude, embora não seja uma assistente social, performa o papel que o poder público se omite. Foi ela quem providenciou uma fechadura para a porta, com a ajuda do irmão. É ela quem, depois de um dia exausta de trabalho, corre atrás do pagamento de contas de água atrasadas, implorando à comunidade por ajuda.

“O rapaz da Embasa fala ‘ô Cleude é você que tá tomando conta daquele povo lá? A conta já tá marcando corte’. Eu peço ajuda um irmão e outro e nós vamos lá e paga”, relatou à reportagem.

No dia em que a reportagem esteve lá, outra vizinha, Janete Salomé de Sousa, também estava presente. Elas formam uma rede de sustento, um contraponto doloroso à ineficiência de quem deveria agir e não o faz. O que mais salta aos olhos, no entanto, é o silêncio. Maria Aparecida fala pouco. Suas frases são monossilábicas, truncadas; sua comunicação se dá principalmente por acenos de cabeça, e seus olhos buscam incessantemente as vizinhas, como se pedissem para traduzir sua dor em palavras que ela não consegue pronunciar.

Cleude confirmou que esse não é um comportamento para visitas; é a realidade na comunicação daquela mãe. Os filhos, fantasma em seus próprios domínios, permanecem recolhidos, tímidos e isolados em cômodos separados.

“Eles têm dificuldades na escola, precisam de apoio psicológico”, aponta Cleude, revelando que apenas dois receberam atendimento do CRAS (Centro de Referência de Assistência Social), mas que todos carecem urgentemente de acompanhamento contínuo.

Bolsa Família

A situação daquela casa, já crítica, mergulhou no abismo há mais de um ano com a suspensão do Bolsa Família. Cleude acredita que o problema está na documentação de Maria Aparecida. Se de fato for, apenas isso, seria um problema burocrático que, nas mãos de uma secretária de Assistência Social eficiente, seria resolvido em semanas. No entanto, nove meses de gestão da prefeitura não foram suficientes. O CRAS, segundo Cleude, acompanha o caso e já levou a família a Teixeira de Freitas e a Itanhém. Mas a regularização, essencial para a sobrevivência mínima da família, até agora, permanece sem solução.

Diante da repercussão negativa nas redes sociais, a secretária Lidiane Guimarães, que também é esposa do prefeito Bentivi (PSB), veio a público ou, pelo menos, teve um áudio seu circulando nas redes sociais, ao qual o Água Preta News teve acesso. Sua fala, no entanto, é um manual de como transferir a responsabilidade do poder público para a população, igualzinho como seu marido sempre fez como estve prfeito, e vem fazendo, obrigando produtores rurais comprar óleo díesel se quiser ver as estradas vicinais patroladas.

Ela lista uma série de ações no que ela chamou de “esclarecimentos”: visitas constantes, cestas básicas, idas a Teixeira para documentação, orientações para tirar identidade, doação de “algum material” para piso, reboco e tinta. No entanto, a reportagem constatou in loco a absoluta inveracidade de parte dessas afirmações. As paredes continuam envelhecidas e sem reboco, o piso irregular, com buracos enormes e a casa em estado lastimável.

O ápice da fala da secretária, porém, é abertamente conclamar a comunidade a assumir o papel da sua secretaria.

“Nada impede que a comunidade ajude porque isso é uma questão de humanidade, até porque nós temos limitações… a gente também conclama e pede, se as pessoas poderem ajudar, que ajudem”, implorou a mulher do prefeito.

Esta fala é sintomática. Em um município de pouco mais de 17 mil habitantes, após nove meses de gestão, era de se esperar que a Secretaria de Assistência Social tivesse um diagnóstico preciso e um planejamento estratégico para famílias em vulnerabilidade extrema, como a de Maria Aparecida. Em vez de um plano de ação, a população ouve um pedido de ajuda, uma admissão de “limitações” que soa menos como uma constatação honesta e mais como uma política de gestão deliberada.

A tentativa de se vangloriar por custear o funeral do marido de Maria Aparecida é a cereja desse bolo de má-fé, uma vez que se trata de uma obrigação legal prevista em lei, com repasse de verba federal para todas as prfeituras do país, específica para tal finalidade.

Enquanto a secretária fala em normas do SUAS (Sistema Único de Assistência Social) para justificar a não divulgação de suas ações (ou a falta delas), a comunidade age. A solidariedade, mais uma vez, preenche o vácuo deixado pelo poder público no município de Itanhém. No próximo sábado (20), vizinhos, com o apoio de moradores do distrito e de igrejas evangélicas, promoverão um mutirão para realizar as pequenas reformas que a prefeitura, segundo sua própria secretária, já teria feito.

A reportagem presenciou Cleude convidando um morador para o mutirão, e ele confirmou prontamente a presença. Este é um ato de bondade, sim, mas é, sobretudo, um poderoso ato de resistência política. É a demonstração prática de que a população de Itanhém e de Ibirajá não compactua com a lógica perversa de gestão que o casal Bentivi e Lidiane tenta impor com o argumento estratégico de que cuidar dos mais pobres é “questão de humanidade” do vizinho, e não obrigação da Secretaria de Assistência Social.

O mutirão, além de rebocar paredes e recosntruir piso dará um mínimo de dignidade para uma família que foi abandonada à própria sorte. É para dizer, com ferramentas e suor, que a humanidade que a secretária invoca reside de fato no povo, mas que isso não absolve ela e seu marido de suas responsabilidades.

A casa de Maria Aparecida, no bairro São João, em Ibirajá, é um retrato do abandono, mas também um altar silencioso de resistência. Onde o poder público falha, mas a solidariedade floresce. E é nessa união, no pão repartido, na força do mutirão, na fé que sustenta, que se acende a chama da esperança, provando que, mesmo nos dias mais sombrios, a luz da humanidade insiste em não se apagar.

FONTE/CRÉDITOS: Por Edelvânio Pinheiro – Água Preta News

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